Fofocas, futricos e outros papos furados

Este blog é escrito por Diego Scalada.

Quaisquer dúvidas, reclames ou sugestões, escreva para: linguadesogra.blog@gmail.com

  • Exercícios lúdicos do arco da velha

    Eis que me peguei dia desses consultando, após um resgate improvável, alguns papéis datilografados entre 2012 e 2013, que remetiam a um período em que tínhamos, em nossa República da Bela Vista, uma Smith Corona – provavelmente da década de 1960 – repleta de pequenas avarias. Um desses arquivos, felizmente, foi salvo pelos descuidos daqueles tempos em que datilografávamos porcamente e quase tudo ia parar na lixeira. Tal registro, salvo aleatoriamente pela negligência de nosso desleixo, merece aqui a transcrição, por se tratar de uma atividade lúdica que cultivávamos naquela fase sub-satelital, em que orbitávamos a USP: lavrar contratos para atividades triviais, cotidianamente bestas. Desde lavar a louça até combinar as faxinas: tudo era objeto de contratos redigidos ao sabor ligeiro de nossos humores e da disposição de escrever para apenas escrever. O que valia naquele então era o advento lúdico daqueles hoje saudosos momentos.

    A bem da verdade, era uma época em que nossas cabeças não estavam preocupadas com o porvir, com os fatos consumados, hoje históricos, que se desdobrariam perante nossos olhos incrédulos e habituados àquela primavera efêmera, em que esse país ineditamente encontrava-se saudável e, no auge de nossa inocência, imaginávamos que o decurso da história seria apenas mais um lance feliz e ordinário do que aqueles dias foram, ou seja, uma euforia social e estritamente privada que beneficiava a quase todos, em um contexto favorável às nossas aspirações e objetivos que certamente se perpetuariam ao longo de nossa indecorosa história. Tempos depois, nos vimos num beco sem saída, e nele malogramos, perante o fim do túnel, surpreendidos com os eventos que se sucederam e que escancaram a nossos olhos virgens a realidade nua e crua em contornos muito mais perversos do que supúnhamos naquele então.

    O registro em questão tratava-se de uma permuta: Mauro me emprestaria uma jaqueta surrada de couro para que eu pudesse suportar o próximo inverno sem bater minhas mandíbulas que encaravam um frio que já não existe mais; em contrapartida, eu lhe daria o pôster confeccionado especialmente para o début da Onagra nos palcos da vida.

    Feito o preâmbulo, segue a transcrição de uma dessas adoráveis brincadeiras, levemente editada para fins de compreensão, visto que a máquina não permite sequer um toque distraído que redunda em irrevogável equívoco:

    INSTRUMENTO PARTICULAR DE CONTRATO

    Mauro dela Bandera Arco Júnior, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado na Avenida 9 de julho, nº XXXX, apto. XX, Bela Vista, São Paulo – SP, doravante o contratante; e Diego Felipe Scalada (em constante decadência), portador do R.G nº XX.XXX.XXX-X, residente e domiciliado no ibid do contratante, firmam na presente data, perante a testemunha Diego Coiado do Amaral, Adevogado, inscrito sob o nº XXX.XXX, na Ordem dos Velhos e Remendados, Ilustríssimos Advogados do Brasil, o presente contrato de obrigação de fazer consistente, em entrega de coisas certas, sem haver má-fé, dolo, mandinga, tramoia, trapaça e tretas, nos seguintes termos:

    Artigo I

    Diego Felipe Scalada, doravante o contratado, compromete-se, com muita barganha, a entregar uma jaqueta de couro tomada do contratante em regime de comodato e, que fique bem claro, do contratado àquele.

    Artigo II

    O contratado compromete-se, ainda, a realizar a restituição do bem supracitado no mais tardar até o fim do próximo inverno, estando o bem em perfeitas condições e com muita disposição de fazê-lo, sob pena de admoestação verbal, injúria à mãe e vilipêndio à dignidade do contratado, coitado. 

    Parágrafo único

    Se mesmo assim ocorrer o descumprimento da obrigação, compromete-se outra vez o contratado a brindá-lo com loas e benefícios, odes e ditirâmbos, cercando-o de respeito e admiração, na exortação ao benefício da filosofia, fazendo com que o contratante permaneça em constante ilusão, delírio e pobreza.

    Artigo III

    O contratado compromete-se, uma vez mais, ao resgate do material gráfico referente à apresentação do grupo musical Onagra Claudique nos palcos do Sesc Pompeia no dia 9 (nove) de outubro de 2012, para o contratante, vulgo Papaura que, por sua vez;

    Artigo IV

    O contratante, uma vez em poder do objeto supramencionado, compromete-se a realizar o devido emolduramento e penduramento, alienadamente (que fique bem claro) do então adorno na parede direita junto à sala de estar em cujos signatários, com pompa e não menos finta, padecem e parcamente habitam.

    Artigo V

    A prestação atribuída ao contratante deverá ser saldada no prazo máximo de dois anos bissextos do já amiúde mencionado.

    Parágrafo único

    O não cumprimento da obrigação por parte do contratante acarretará, sem sombra de dúvidas, numa enxurrada de prantos, lamúria, tristeza e indignação de todos que no imóvel receptor vivem ou frequentam. 

    Artigo VI

    O ato de emolduramento, traslado, avaliação e opção estética do material objeto do presente contrato fica sob a inteira e exclusiva responsabilidade do contratante, resguardando-se as custas equivalentes e a responsabilidade de saldar tudo às expensas do mesmo.

    Artigo VII

    O objeto do presente instrumento particular de contrato permanecerá devidamente emoldurado e exposto na parede do imóvel onde residem o contratante e o contratado até o integral e recíproco cumprimento das obrigações aqui elencadas.

    Artigo VIII

    Estando devidamente acordadas, as partes subscrevem o presente instrumento como atestado de boa-fé recíproca e incontestável, diria até nunca antes vista – nem mesmo nos tribunais ancestrais de Roma.

    São Paulo, 29 de novembro de 2013.

    Firmam:

    Mauro Voadora

    Racto

    Tattu



  • Sobre vespas e versos populares

    Sempre nutri um misto de fobia e admiração pelas vespas, tanto por suas formas perversas de reprodução quanto por sua capacidade de ferrar um ser humano como só criaturas artrópodes conseguem. Em um dia tranquilo, me alternando em páginas na internet entre um café e outro, lendo sobre elas, topei com uma espécie cujo nome popular – e obviamente os nomes populares sempre prevalecerão sobre as designações horrorosas oriundas da ciência taxonômica – é vespa-cavalo-do-cão. Este nome em si já é eloquente, hiperbólico, e por isso diz muito mais do que delas esperamos. Contudo, a designação consagrada pelo crivo popular me fez pensar em nomes científicos de hipotéticas vespas e suas respectivas alcunhas populares, em versos, craro! O resultado ora vos exponho, enrubescido, dois ou três leitores deste probríssimo broguinho:


    Rugitus cariocarum

    Vespa-vapo-vapo-

    rainha-do-litrão-barato-

    sua-oferta-é-sempre-boa-

    mas-o-veneno-é sempre-caro!


    Romae imperatrix

    Vespa-vespérrima-

    antes-vespíssima-

    hoje-vespasiana-

    aguilhoou-o-rei-de-Roma-

    e-com-seu-nome-fez-a-fama.


    Musculata creatinae

    Vespa-feroz-e-malhada-

    é-virada-no-Jiraya-

    ela-é-mesmo-muito brava-

    ¡é-um-super-sayagin-de-saia!


    Vespula modica

    Vespa-“tamanho-não-é-documento”-

    seu-ferrão-pequeno-é-um-fermento-

    quando-a-dor-parece-estar-minguando-

    ¡ele-amplia-seu-tormento!


    Avispara venenosa

    Vespa-Vespax®-

    quarenta-miligramas-

    mas-só-uma-delas-basta

    pra-te-pôr-de-cama!

    Librorum liber

    “¿Quem-mexeu-no-vespeiro?”

    -essa-vespa-best-seller-picou-tantos-

    que-já-nem-se-lembra-da-vítima-

    a-quem-iludiu-primeiro.


    Vespacula axé bahiensis

    Marimbondo-Carla-Perez-

    sua-peçonha-é-só-malícia-

    e-seu-bundão-(ninguém-discorda)-

    ¡é-de-fato-uma-delícia!



  • Os amores gelados são muito mais quentes

    Comprei uma geladeira. Não é bem uma Brastemp, dessas que vemos nas melhores casas, mas cumpre sua função: é econômica, ampla e quase barata. Afinal de contas, o que importa é que comprei uma geladeira, singela, imponente e alta. E para o desespero geral das más línguas gerais – a exemplo da síndica que, quando me viu subindo pela escada com aquele trambolhão, disse aquela aquisição ter sido um exagero –, geladeira minha escolho eu, não o olho gordo dessa gente que só vê o que os olhos ocultam, sem se dar conta de que, ora, agora sim, tenho uma geladeira à altura de minhas ambições. Novíssima, em aço escovado, dividida em fartas prestações no crediário. 

    O mesmo amor que conjuga seres animados também enlaça uma alma solitária e um eletrodoméstico, seja este uma Brastemp ou não. E confesso… Foi amor à primeira vista! Tão logo entrei na loja de departamentos, com ela me deparei, se insinuando, locupletando comodamente as lacunas de minhas expectativas. E não, não tive outra reação senão sofrer resignado os influxos da paixão. Se foi um achado? Claro que não! Tenho certeza de que ela já me aguardava naquela queima de estoques, cansada de ser apenas aberta, ligeiramente apreciada, quando o que ela queria mesmo era estar plugada na tomada, gelando meus víveres, e claro, sentindo-se gelada! Pois como diz o ditado: “geladeira desligada em lar nenhum faz sua morada”. Não basta? Pois tome esse verso de Cazuza, escrito ao inspirar-se em nossa futura união: “nossos destinos foram traçados na maternidade!”.

    Hoje tenho discernimento suficiente para refletir sobre o que de fato nos irmanou como unha e carne. Ora, foi seu design discreto, sua inspiração nórdica, seu charme sueco! Vladimir, o vendedor, até tentou me dissuadir e me mostrar muitas Brastemps, mas ao ver meus olhos vidrados, passamos imediatamente à negociação daqueles 470 litros de promessas geladas em pleno verão das Parahybas. 

    Concluída a transação, me senti honrado e civil, me senti de fato verdadeiro cidadão, desses que saem para comprar uma geladeira e voltam com a nota fiscal da transação concluída na mão. Não é uma Brastemp, reconheço, mas pouco importa! Passados quase três meses, seguimos inseparáveis em nossa lua de mel glacial; importa mesmo é que comprei uma geladeira, com frost free e função drink express. Isso sem mencionar seu freezer, espaçoso como um antigo Chevrolet, de modo que hoje posso sair pelo interior disputando torneios de truco à toa – agora já tenho onde guardar minha leitoa!

    Nosso conluio não foi, sem sombra de dúvidas, efêmero, e não posso passar pelo meu corredor-cozinha sem parar para observá-la, ou melhor, apreciá-la: é uma geladeira grande e vasta, a despeito do que dizem as más línguas, dentre elas a de meu analista que, num rompante lacaniano, alegou que eu havia projetado minhas frustrações de 2024 na aquisição daquela – segundo ele – câmara fria!

    É certo, não poucas vezes abro sua porta apenas para sentir um sopro gelado refrescar minhas carnes pelo vapor do calor, em lenta cocção, cozidas. Mas daí a dizer que descontei minhas frustrações é coisa de recalcado! Aliás, não apenas pressinto, mas estou seguro de que, em suas sessões com seu analista, ele, o analista, confessa, aos choramingos, os ciúmes que sente de minha nova namorada. Ora, duvido que Lacan tenha tido uma geladeira tão grande e tão jeitosa como a minha. Poder aquisitivo? Ambos, meu analista e Lacan, têm mais do que eu. Mas bom gosto ao escolher esse formidável eletrodoméstico? Duvido e aposto – e olha que nem é uma Brastemp!

    O difícil mesmo é a separação – não a do analista – mas a de minha geladeira. Às vezes, quando estou na rua sofrendo os influxos implacáveis do sol invicto, para conforto de minh’alma, penso nela, e só de pensá-la já me gelo todo! Então é hora de voltar pra casa e abrir uma gelada que minha namorada cinza, com tanto afinco e dedicação, religiosamente me guarda. 

    Não é, definitivamente, uma Brastemp. Mas às favas meus detratores, pois agora sou titular, como muitos civis por aí, de uma formosíssima, bündcheniana geladeira. Dizem as más línguas que entrei numa fria! Entrei mesmo, mas não sem provar que às vezes é bom entrar numa fria!!!

    Me conforta o simples fato de que, dentro de seis meses, estará paga. Então será só minha, e nela hei de conservar e investir tanto minhas memórias conservadas, meus arrozes e demais derivados de arrozes, arduamente conquistados, quanto os rendimentos que terei de ganhar a fim de saldá-la e tê-la, por fim, instalada – até que o destino nos separe – em nossa cozinha alugada.



  • A ida de Foreman, a Era de Ouro e as surras humanizantes

    Acordo com a notícia da morte de George Foreman, um monstro dos pesos pesados, o último a subir entres os maiores pugilistas da Era de Ouro que marcaram o boxe na década de 1970. Imediatamente, recorro ao Youtube a fim de rememorar os grandes momentos de Big George, como era conhecido. Após muitos anos, revi os grandes nocautes protagonizados por Foreman, consumados, quase sempre, contra excelentes atletas cujas vidas foram marcadas pelas adversidades, contravenções e tragédias. Todos eles, sem exceção, vítimas da força descomunal e da direita insuperável de Foreman.

    Vejo o canadense George Chuvalo, dois dos três filhos mortos de overdose, preso ao corner, recebendo resignadamente as pedradas que Foreman lhe desferia. Os que estiveram no Madison Square Garden naquele dia de outono, em 1970, assistiram a uma verdadeira e cruel carnificina. A disparidade entre forças naquela cena é tamanha que nossa reação é torcer para que o árbitro interrompa a luta – por fim é o que se dá. Chuvalo não vai à lona, mas sem a intercessão do árbitro, uma tragédia catastrófica certamente ocorreria, pois o colossal Chuvalo se recusava a cair.

    Três anos depois, em Kingston, Foreman desafia o enérgico Joe Frazier, defensor do cinturão dos pesos pesados pela WBA, e precisou de apenas dois rounds para Big George despachá-lo. Frazier, com seu jogo de pernas rápido e seu peculiar movimento pendular, oferece o ensejo perfeito à estratégia de Foreman: esperar Joe oferecer-lhe a face – em seu incessante vai-e-vem – para aplicar-lhe um uppercut indefensável. E é justamente o que no duelo se concretiza: Foreman, ungido pelo dom da perfeição, consegue dois knockdows ainda no primeiro round. Bem, o que se viu no segundo foi uma chuva de surra de George contra um Frazier resignado, como se estivesse decididamente fadado a apenas apanhar. Joe cai, ao todo, seis vezes, e Foreman sagra-se campeão mundial dos pesos pesados pela primeira vez.

    Frazier e Foreman se encaram durante a pesagem – Getty Images.

    Revejo também o brutal nocaute contra o poderosíssimo Ken Norton, num contexto que se afigura como uma espécie de trabalho sujo que alguém deveria fazer. E Foreman, solícito, se dispõe a derrubar mais um gigante dos pesos pesados com uma espontaneidade espantosa. “Hei, me prepare um chá de hibisco, vou ali sovar a cara de um infeliz e já volto”, é a frase que me vem à mente após ver George fagocitar Norton sem dó nem piedade no Poliedro de Caracas, em março de 1974. Não se trata de um knockout qualquer, visto que Foreman encontra-se em plácido e inequívoco estado de graça. Mais, o ímpeto de agressividade apurada e a inabalável convicção da vitória impelem um obcecado George a se aproveitar da guarda aberta de seu oponente para trucidá-lo como poucas vezes se viu na história dos pesos pesados. Foreman foi um mestre de cerimônias naquele dia, e celebrou, ali, não uma luta, mas um matrimônio sério e monogâmico entre Norton e a lona em apenas dois assaltos.

    Em outubro do mesmo ano, George Foreman aterrissa em Kinshasa, então capital do Zaire – hoje República Democrática do Congo –, envolto numa aura cercada de mistério. Desce as escadas do avião acompanhado apenas por seu cão de estimação, numa postura lacônica, pouco amigável e avessa aos holofotes da imprensa. Ao passo que seu oponente, Muhammad Ali, protagoniza um verdadeiro espetáculo midiático: alguns de seus treinos eram abertos, seus desfiles pelas ruas de Kinshasa, diários, e as provocações a Foreman, uma espécie de obsessão. O gênio e boquirroto Ali se presta a uma campanha de difamação contra Big George jamais antes vista. Os zairenses, ante o comportamento monossilábico de Foreman e os apelos populistas de Muhammad, se voltam contra Foreman, a despeito dos especialistas cravarem, quase sem exceção, que o outrora Cassius Clay não duraria dois rounds.

    A era de ouro dos pesos pesados viria a se consagrar no imaginário popular porque seus três maiores expoentes, Ali, Frazier e Foreman, tinham estilos complementares, porém antagônicos: o de Ali, perfeito para ser batido por Frazier; o de Frazier, excelente para ser surrado por Foreman; e o de Foreman, viríamos a saber depois, e de forma surpreendente, suscetível à estratégia e à sanha implacável de Ali.

    The Rumble in the Jungle, como ficou conhecido o embate entre Muhammad e George, é sem sombra de dúvidas a maior luta entre pesos pesados do todos os tempos, e um dos maiores momentos da história do esporte, uma vez que seu desdobramento contrariou a previsão unânime entre os experts que davam Ali como natimorto naquela luta. No segundo semestre de 1974, Foreman vivia seu auge. Portanto, o prognóstico dos especialistas não era insensato, tampouco descabido. O problema maior era a incógnita estrela emergente de Muhammad Ali – que naquele então fazia uma campanha de recuperação de seu prestígio como pugilista após três anos banido do esporte por se recusar a prestar o serviço militar no Vietnã.

    Ali foi perspicaz ao reconhecer de antemão que, se partisse para uma trocação franca com Foreman, não passaria do terceiro round. Para tanto, adotou uma estratégia que se mostraria perfeita – e que ficou conhecida como rope-a-dope. Muhammad, aferrado às cordas, fechou a guarda e ofereceu o lombo às investidas de Foreman. Os rounds se sucediam com franca vantagem a George. Tudo levava a crer que nenhum dos dois sucumbiria e que aquela contenda seria decidida pelo escrutínio dos juízes – certamente favoráveis a Big George. Contudo, no oitavo round, Foreman, absolutamente exaurido após tantos ataques se mostrarem inócuos, e com ambos os rins carcomidos pelos golpes discretos porém contumazes de Ali, o vê ressurgir como uma fênix para levá-lo à lona em questão de 40 segundos – para a incredulidade de todos.

    A queda de Foreman ante Ali – AFP.

    Anos depois, Foreman reconheceria que ter perdido para Ali fora a melhor coisa que lhe ocorrera ao longo de sua vasta carreira. A derrota, no boxe, independentemente das dores e dos horrores que inflige no adversário, certamente humaniza, pois escancara o flanco da fragilidade humana, revelando nossas chagas mais íntimas. Após aquela luta, Big George reconhece seu lado vulnerável, e tocado por uma espécie de revelação, vê despertar em si um lado espiritual e missionário, passando, dali em diante, a ser um servo do evangelho. Seu envolvimento com a fé é tamanho que, em 1977, após sua segunda derrota como profissional, anuncia precocemente sua saída dos ringues para servir apenas aos desígnios divinos. Funda a igreja Senhor Jesus Cristo, no Texas, seu estado natal, onde passa a pregar como pastor.

    Os que viveram aquela era de ouro do boxe foram certamente privilegiados: em 1971, viram Frazier impor a primeira derrota a Muhammad Ali em sua carreira profissional; em 1975, viram também Ali “debochar” de Frazier nas coletivas de imprensa que antecederam a terceira e última luta entre os dois – conhecida como Thrilla in Manila. Em uma das entrevistas, Ali, defensor e militante ferrenho dos direitos civis da comunidade negra estadunidense, irrompe perante os microfones segurando nas mãos o boneco de um macaco, para em seguida fazer uma alusão no mínimo infeliz entre Joe e o primata. O polêmico e controverso Ali, como costuma se dar entre os gênios irascíveis e suscetíveis aos erros mais rotundos, lamentavelmente profere: “será um killa, e um thrilla e um chilla, quando eu pegar aquele gorila em Manila”. A iniquidade, infelizmente, prevaleceu, e após uma cruenta e renhida luta que durou 14 assaltos em condições extremas e sob o úmido calor filipino, o técnico de Frazier pede a interrupção do combate, consagrando Ali uma vez mais como um dos maiores do pugilismo.

    Quis o destino, cruel com Frazier em 1975, finalmente se voltar contra Ali, já em 1980. No embate entre o maior de todos os pesos pesados à época e Larry Holmes, ex-sparring de Ali, o que se viu foi uma aula magna de como espremer, constranger e extraviar um adversário. Muhammad Ali já não estava em sua melhor forma, e muitos disseram que Holmes também não queria aquela luta, pois sabia que estava em plenas condições de promover uma carnificina contra um amigo e oponente – pouco importa, se subiram no ringue, como machos que são, que cada um defenda seu culhão.

    Naquele dia, Holmes pôde restituir à ínfima minoria que não torcia a favor de Ali algum laivo de dignidade. Valendo-se de sua avantajada envergadura, o assassino de Easton desferiu uma saraivada de jabs potentes de direita, minando paulatinamente os alicerces de Ali que, cansado, viu Holmes se agigantar, fazer-se figura onipresente no ringue e brincar aleatoriamente com sua massa inerte. Ali foi surrado nos quatro corners, ao passo que Holmes foi o artífice de um dos maiores momentos da história do boxe: mostrar ao mundo as fragilidades do há anos imbatível Ali. A certa altura daquela contenda, era evidente no olhar de Muhammad Ali o mais puro e perfeito desespero, a potência quase inédita de sua incredulidade. Mais do que isso, o mundo testemunhou naquela luta um Ali vulnerável como nunca antes, graças àquela surra humanizante e tão apelativa à misericórdia que, Angelo Dundee, técnico de Ali, pediu a interrupção do embate, devidamente acatada pelo árbitro. Por fim, o mentor Ali finalmente provara o sabor edificante de ser vítima de um knockout de seu pupilo, técnico, mas ainda assim um knockout.

    Em 1987, dez anos após seu recesso dos ringues, Foreman anuncia seu retorno com o claro intuito de levantar fundos para a associação filantrópica juvenil que acabara de fundar em Marshall, Texas. Sua reestreia foi uma prefiguração do que viria a ser a segunda versão de Foreman na nobre arte. Oscilando na casa dos 140 quilos, o pesado e lento Big and Fat George foi gradualmente adquirindo sua melhor forma dentro das limitações impostas pela idade, deixando uma longa e variada fila de desvalidos vítimas de seus implacáveis nocautes por onde passou. Nesse ínterim, dois brasileiros tiveram a honra de terem suas ventas desfiguradas pelo potente e infalível punch de George. O primeiro, Manoel “Clay” de Almeida, que em 1989 suportou quase três assaltos completos até que o árbitro, com muita sensatez, decretasse o fim daquele genocídio por nocaute técnico. O segundo, Adilson Rodrigues, o bom e velho Maguila, já no ano seguinte – e em confronto preliminar entre a estrela da vez, Mike Tyson contra Henry Tillman. Maguila até conseguiu suportar bem o primeiro assalto para, no segundo, receber um direto frontal perfeitamente encaixado, um verdadeiro piparote foremaniano. As cenas que se sucederam à colisão da fuça de Adilson Rodrigues contra o punho pétreo de Foreman são dignas de pena e estarrecimento: vemos o campeão sul-americano estatelado na lona, olhando para o nada e completamente alienado de suas faculdades cognitivas. Em uma ocasião póstuma, recuperado o siso e o juízo, Maguila teve a decência de admitir: “esse velho bate como uma britadeira!”.

    O confronto que opôs em lados distintos do ringue nosso campeão Maguila e o então gigante Foreman parece-me de uma imprudência extrema. Muitos anos depois, por volta de 2014, Maguila foi diagnosticado com encefalopatia traumática crônica – a outrora intitulada demência pugilística. Credite-se a doença degenerativa de nosso maior peso-pesado àquele direto recebido em Las Vegas 24 anos antes.

    Foreman, por sua vez, foi acumulando vitórias em seu cartel – a maioria por nocaute –, provando que já não subia aos ringues apenas para sustentar seus caprichos filantrópicos. George queria mais. Em 1991, encarou o detentor do cinturão dos pesos-pesados pela World Boxe Association, Evander Holyfield e, após doze assaltos, perdeu o confronto, disputadíssimo, por pontos. Três anos mais tarde, veio-lhe uma segunda chance. Foreman encara o canhoto e ágil Michel Moorer, que havia suplantado Holyfield e defendia o cinturão da categoria.

    Essa luta é especial não apenas para a consagração de Foreman, mas, indubitavelmente, para a história do boxe, por ter colocado frente a frente não apenas dois dos maiores lutadores da época, mas dois estilos completamente distintos: o clássico, de George, menos técnico e com menos ímpeto de golpes, mas muito mais resiliente a suportar uma boa e tremenda surra; e o moderno, representado por Moorer, que conjugava força física e técnica extremamente apurada – escola muito mais afeita a combates curtos, consumados, via de regra, por nocautes nos quatro primeiros rounds. Foreman, como um velho baluarte tombado pelo IPHAN, manteve-se prostrado no centro do ringue com seu jogo de pernas lento, quase inamovível, ao passo que o jovem Moorer, entre uma estocada e outra, valia-se dos poucos momentos de vulnerabilidade de Foreman para desferir suas sucessivas saraivadas de socos, que iam se acumulando à medida que os rounds se esvaíam. George, contudo, suportava, ou melhor, penosamente resistia, e de tanto resistir, a luta arrastou-se ao décimo assalto. Michael, a essa altura, estava em franca vantagem segundo a contagem dos três juízes da contenda.

    Então sobrevém o momento apocalíptico e luminoso: Foreman, aos frangalhos e provando o pão que Moorer o fizera amassar, com a cara já inchada e completamente desfigurada, pareceu lembrar-se daquela longínqua noite de 1974, em plena canícula do Zaire, mais precisamente do oitavo round, quando viu Ali subitamente crescer e crescer como se George estivesse lutando contra dois dele, como se Ali estivesse fazendo jus à sua alcunha de “the greatest”, pronto a derrubá-lo em 40 segundos, e invocando talvez essa reminiscência fundamental, decidira usar o artifício de seu maior algoz. Num rompante de fênix, a direita de Foreman, numa ofensiva aparentemente trivial, encaixa-se perfeitamente contra o maxilar de Moorer, que imediatamente desaba em decúbito dorsal, abrindo os braços como Cristo na cruz e apelando a algum deus – e naquele momento qualquer um servia – a providencial intervenção divina em prol de sua vida – que parecia descer pelos ralos do inferno e do ignominioso opróbrio do esquecimento.

    O maior momento do boxe é efêmero, dura de fato muito pouco – segundos, eu diria –, e começa no preciso momento em que um golpe bem desferido encaixa-se perfeitamente na cara adversária, sucedido pela velocidade terrível e vertiginosa da queda – mas lenta para a vítima –, durante a qual tudo se passa na cabeça do perdedor – em geral, figuras desbocadas, contadores de bravatas, seres adulterados por alguma sobredose de testosterona realmente macha. Nesses momentos graves, conhecem e, mais do que isso, dão a todos a prova de sua fragilidade vulgar e flagrante.

    O olhar completamente perdido de Moorer, sem entender bulhufas, é a prova inequívoca de que naquela luta ele provara o mesmo que Foreman provou contra Ali no Rumble in the Jungle, mas naquele confronto o outrora derrotado George Foreman sagrara-se campeão mundial dos pesos pesados, pela segunda vez, e aos 45 anos, obtendo um recorde até hoje imbatível: o mais velho a lograr essa dificílima façanha. De lambuja, infundiu no jovem Moorer a surra humanizante – sempre dentro dos ringues e sob as regras estritas do esporte, é claro – encerrando sua carreira de forma digna nos anos posteriores, como um pugilista decadente, perdendo um e outro pleito para jovens que, se o enfrentassem em seu esplendor pugilístico, certamente não teriam durado dois assaltos contra a força indecorosa de Big George e seu inesquecível cruzado de direita.

    Em 1996, o mundo assistiu a um decrépito Muhammad Ali acender, tremebundo, a tocha olímpica na abertura dos Jogos de Atlanta, enquanto Foreman, incansável, disputava suas últimas contendas nos ringues – no apagar das luzes de sua vitoriosa trajetória. Credite-se ao velho George essa coisa que atribuíram a Ali equivocadamente como Mal de Parkinson, e que o acometera em virtude das tantas pancadas que o bailarino das lonas e cordas recebera naquele Zaire repleto do horror promovido por Mobutu Sese Seko nos idos de 1974.

    Do início de sua carreira profissional ao fim – geralmente deprimente, e marcado pelas máculas dos que se dispuseram a dar e a receber crepitantes pancadas – não há nenhuma semelhança entre o jovem George, taciturno, que desembarcara em Kinshasa com cara de poucos amigos, e aquele último Foreman, bonachão, prestes a se aposentar, e afeito às entrevistas, quando se dava ao prazer de longas conversas com jornalistas. Em seus últimos momentos nos ringues, Foreman revelava abertamente as dores e delícias de sua longeva trajetória como pugilista. Conhecera, por fim, nas surras humanizantes, a volúpia de ser o que era: um homem íntegro e pronto a seguir dando e recebendo pancadas pela vida toda – se a vitalidade o permitisse, obviamente.

    Desde a derrota para Ali em 1974 até sua precoce e primeira aposentadoria, o estafe de Big George tentou, sem sucesso, uma revanche daquela que ficou conhecida como “A luta do século”. As razões pelas quais Ali ou sua entourage não topou aquela que certamente teria sido a segunda luta do século, não sabemos, mas podemos intuir. Muhammad Ali foi, sem sombra de dúvidas, o maior atleta de todos os tempos, por tudo o que protagonizou nos ringues – e sobretudo fora dele. Mas olhando apenas a nobre arte, e analisando apenas os feitos que elevaram os postulantes à glória pugilística dos pesos pesados ao lugar mais alto, do qual todos foram digníssimos merecedores, creio não haver dúvidas sobre quem tenha sido o maior.

    Tudo o mais são anedotas, grelhas elétricas e milhões de dólares na conta.



  • Retardar la Puesta

    João Pessoa, 21 de abril de 2022, horário solar (UTC-2), horário civil (UTC-3)1

    Morar no ponto mais oriental das Américas é se render inerme aos caprichos implacáveis do Sol. Podemos, como fazem alguns sábios e ousados indivíduos – perante os quais nutro uma pontinha de inveja –, ignorar solenemente os ponteiros do relógio e viver alheios aos ditames impostos por esta engenhosa máquina de marcar o tempo; podemos, ainda, como coléricos ensandecidos, vituperar o astro-rei e toda sua abundância solar convertida em calor e, ao fim e ao cabo, toda e qualquer súplica, praga ou sortilégio terão sido em vão. Se há duas leis naturais que suscitam horrorosa e inconsolável fúria em tiranos, ditadores e demais homúnculos dotados da ambição de Júlio César e da megalomania de Nero, uma vez que incapazes de alterá-las, estas são a Lei da Gravidade e a movimentação do Sistema Solar. Não há decreto que atrase ou adiante o nascer e o pôr do sol, tampouco há, até onde se sabe, um mecanismo físico viável cuja operação limite ou altere a lei de Newton. Ambas são leis inflexíveis, felizmente incorruptíveis ante a mais perversa de nossas vontades. Em contrapartida, o engenho humano concebeu o relógio, as demarcações meridianas e a padronização das horas segundo o arbítrio que melhor lhe conviesse. E assim, já que não podemos controlar a velocidade ou a direção de deslocamento do sol, podemos, por outro lado, enquadrar regiões em fusos que, pela lógica natural, não necessariamente correspondem àquele a que pertencem segundo a divisão, mais justa e racional possível, do planeta cortado por meridianos. A epítome do que vos exponho pode ser cabalmente ilustrada pelo exemplo chinês. Decerto, um dos “lampejos” mais infelizes do todo poderoso e líder supremo Mao Tse-Tung, uma vez repelido o Kuomintang, agora encurralado em Taiwan, e após empreender a Grande Marcha do Exército Vermelho – uma das aventuras mais desvairadas da história –, foi estabelecer um único fuso horário ao quarto maior território do mundo – embora o país atravesse cinco meridianos e apresente uma silhueta longitudinal – no intuito de simbolizar a unidade nacional. Sem sombra de dúvidas, se Mao contasse com a protuberância demográfica chinesa a fim de colher soluções menos extenuantes para representar a unidade tão almejada pelo Partido Comunista Chinês, certamente teria extraído dessa hipotética consulta popular uma miscelânea de outros expedientes a que Mao poderia ter lançado mão para congregar os chineses – gerando menos distorções e sofrimento horário a seus bilhões de habitantes –, mas isso já é assunto para outras tertúlias. Fato inequívoco é que, quando os primeiros raios solares tocam a porção mais oriental da China, do outro lado, em seu extremo ocidente, mais precisamente nos territórios autônomos de Xinjiang e Tibete, ainda é noite cerrada e das mais tenebrosas.

    Aqui, no ponto mais oriental das Américas, sofremos ou nos refestelamos com o dia, a depender de como o encaramos, em virtude tanto de sua intransigência solar quanto do fuso horário levemente “arbitrário” adotado nestas latitudes. Ora, o “Portal do Sol”, alcunha pela qual a cidade é conhecida por receber os primeiros raios solares do continente americano, deveria, em tese, adotar – segundo a divisão meridional concebida pelos homens, embora não isenta do arbítrio inerente a qualquer padronização – um fuso horário distinto, ou seja, o UTC-2, tal como se faz na paradisíaca Fernando de Noronha – apenas as regiões insulares do nordeste brasileiro seguem este fuso – devido a seu enquadramento meridional. Contudo, seguimos o UTC-3, fuso de Brasília, cidade que dista daqui 1.718 quilômetros em linha reta a sudoeste. Portanto, impera nesses tristes e belíssimos trópicos uma pequena distorção, uma espécie de ruído rosa, um lapso em seu afã ansiogênico, em nada comparável aos disparates do tirânico horário chinês, mas ainda assim capaz de alterar a rotina de forasteiros e reger nosso cotidiano com a austeridade e a sisudez de Margaret Thatcher. Hoje, por exemplo, o sol nasceu às 05:22, mas se seguíssemos o fuso em que nos enquadramos, meridionalmente, nasceria uma hora depois, às 06:22. 

    Em outros momentos do ano, sobretudo em novembro, podemos vislumbrar o sol despontar no horizonte logo às 04:51, o que significa que, a partir das 4:20 da madrugada, já contamos com a presença da luz da alba que precede o nascer do dia propriamente dito. Essa ansiedade do sol em se fazer presente nestas paragens também se traduz numa saída de cena demasiadamente precoce – quase um coito interrompido. O crepúsculo, momento tão ansiado durante a canícula do verão, se inicia por volta das cinco da tarde; às cinco e quinze, faz-se as trevas. Por morar ao lado de um colégio, é com grande estupefação que observo crianças de sete e oito anos em trajes escolares, cada qual com sua lancheira estampada com motivos infantis, saindo das aulas vespertinas em pleno breu, às 18:00. Há algo esdruxulamente insólito nessa cena, a meu ver análoga a uma vaca pastando no terraço de um arranha-céu em Upper East Side, Pavlova dançando balé no candomblé, baianos de ceroulas sassaricando na Sibéria. Com o perdão da digressão, reconheço que, por ter crescido no meio-oeste, próximo à linha imaginária e tortuosa que demarca a transição para o GMT-4, também eu quando criança chegava à escola para a aula matutina com “o dia” ainda “noite” durante o inverno, todavia tratava-se de um fenômeno apenas sazonal, muito distinto da realidade trevosa e permanente das aulas vespertinas ministradas em Juan Persona. 

    Enfim, faço esse extenso rodeio monotemático para afirmar com alguma contundência que o regime solar nesta ponta do Nordeste brasileiro destoa muito das demais regiões do país, de modo que, para um nascido no Sudeste, esse fenômeno abunda em estranheza e demanda uma generosa disposição à adaptação. Tudo por aqui começa e termina mais cedo, ao contrário, por exemplo, da Argentina, cujo fuso “atrasado” confere aos hermanos uma cultura repleta de hábitos noturnos, à diferença que, quando o sol assoma no horizonte bufando seus vapores cálidos em nossas praias discretas e exuberantes logo às cinco da manhã, só o fará em Buenos Aires duas horas depois, muito embora o fuso adotado seja o mesmo, e a despeito de que, muito provavelmente, o fuso seja o único aspecto que de algum modo nos irmane a nossos hermanos. No mais, a Argentina constitui a antítese perfeita ao regime solar destas paragens e, para minha completa desolação, constato que a adoção do horário “adiantado” de Brasília é muito antiga e já está irrevogavelmente entranhada no modus vivendi dos paraibanos, tal como o rubacão – prato típico daqui –, a carne de sol e o onipresente cuscuz, ou seja, o regime horário aqui adotado é parte inalienável de sua cultura. Lutar pelo contrário seria causar intrigas à toa, seria sobretudo uma bisbilhotagem etnocêntrica que só redundaria em mais polêmicas inócuas.

    O fuso de Brasília, vigorando sem alarde nas Parahybas, faz com que tenhamos um período matutino específico, e que antecede a manhã funcional propriamente dita. Em outras regiões do país, devido a menor distância temporal entre o nascer do sol e o início do expediente de trabalho, não se dispõe de tanto tempo livre até que nos submetamos religiosamente às demandas pachorrentas de nosso eterno cotidiano. Acordamos, escovamos os dentes, tomamos apressadamente um café e saímos, muitas vezes sobressaltados, para nossos respectivos trabalhos a fim de perpetuar nossa sina extenuante, pagar os boletos e retardar qualquer reviravolta que possa nos eximir deste intragável Brasil. Nas Parahybas, se acordarmos com o sol ainda em suas primícias de alvorada, é possível, tal como diria com muita perspicácia Ezra Pound, “chacoalhar o orvalho da manhã com os coelhos” e, antes de cumprirmos o rito insípido e maçante do trabalho, nos dedicar a outras atividades, talvez mais amenas: para os mais privilegiados, fazer uma caminhada ou uma sessão de yoga kundalini na orla assistindo ao sol imponente se levantar no horizonte em alto mar, ainda inofensivo; e para aqueles que não têm a mesma sorte, dedicar-se à organização do dia, preparar as crias para o colégio ou a marmita para o almoço, tudo isso bem antes de que o astro-rei, às oito da manhã – em brasa e fustigando nosso lombo já crispado de açoites solares – convoque as Paraíbas ao jugo diário de sua violência abrasiva.

    Há também uma outra peculiaridade digna de menção. Juan Persona, ao contrário de outras capitais litorâneas que floresceram ou foram se deslocando à beira-mar, nasceu às margens do rio, completamente alheia aos influxos marítimos – e num local bem distante das praias. Foi somente a partir da segunda metade do século XX que a cidade passou a contemplar com os olhos marejados suas esplêndidas praias e seu mar camomílico sob uma outra ótica. Isto se deu, em maior ou menor grau, a partir da abertura da Epitácio Pessoa, avenida responsável por ligar o parque Sólon de Lucena, encravado no centro histórico, à praia de Tambaú. Estamos falando, portanto, de uma cidade que passou a maior parte de sua existência (pelo menos quatro séculos) ensimesmada em seus hábitos fluviais, absorta em sua defesa pernambucana e, uma vez desperta de suas obstinações tubérculas, timidamente – e aqui é preciso repetir: muito timidamente – foi-se expandindo rumo a leste à medida que a medicina preconizava banhos de mar como terapia a determinadas afecções e que os brasileiros, de um modo geral, descobriam as benesses proporcionadas pela vida vivida longe da brenha e perto da beira. Uma vida distinta, e sobretudo distintiva, dado que fruir a vida à beira-mar é privilégio de poucos e, uma vez assentados na beira, desfruta-se ainda da prerrogativa belíssima e alienante que reside na visão alijada do continente e de suas ecléticas desgraças, numa espécie de síndrome oceanocêntrica à moda Dorival Caymmi, quem, obcecado pelo mar, assistia ao voo plácido do albatroz, à pesca sazonal da tainha, à periclitante tremulina da maré baixa, refestelando-se de belezas líricas em tudo, muito embora, em sua retaguarda, nossa tragédia brasileira grassasse de vento em popa, consumando com sua desfaçatez os mais plenibundos tormentos, atribulações e infortúnios nem tão líricos assim.

    Esse processo relativamente recente e paulatino da “descoberta” do mar engendrou um profundo contraste em Jampa. Há uma divisão clarividente e acentuada entre os bairros que se espraiam pela região litorânea e aqueles enquistados na parte alta da cidade ou à beira-rio. Estes últimos, antiquíssimos, conformam justamente o centro histórico expandido da capital, fundada em 5 de agosto de 1585 e erigida às margens do rio Sanhauá – voltada a oeste. Sua vantagem consiste justamente na localização privilegiada para assistir ao pôr do sol – chamemos essa região de Havana. Já os bairros praieiros – onde vivo –, com seus prédios novíssimos, oferecem a abundância de bons restaurantes, uma formidável rede hoteleira e edifícios que padecem do mal-gosto predominante da arquitetura pós-moderna, além de contarem, por sua vez, com uma localização perfeita para a contemplação do nascer do sol – chamemo-los de Miami2

    E como qualquer outra capital terceiro-mundista, com suas vísceras efervescendo numa espécie de louvor zoroástrico e apático, avesso a qualquer mudança, João Pessoa conserva rigorosamente seus contrastes extremos. Em contrapartida, por estar situada entre o mar e o rio, proporciona aos habitantes desse fla-flu urbano ambos os fenômenos, cada qual a seu modo. Não seria exagero afirmar, com alguma dose de juízo condescendente, que Havana e Miami, a despeito de suas desigualdades discrepantes, tão peculiares à nossa malsinada América Latina, conservam ainda algum verniz democrático no que diz respeito ao acesso que seus habitantes têm ao fenômeno diário do nascimento e ocaso solar.

    Para a tarefa que me foi atribuída, ou seja, aquela de retardar la puesta, estabeleci de antemão um roteiro a ser percorrido a pé, com paradas em três pontos de observação em pleno coração do famigerado centro histórico: o Hotel Globo, a Casa da Pólvora e a rua General Osório, uma vez que estas três “estações de contemplação” possuem, respectivamente, altitudes ascendentes. 

    Munido dos itens necessários à humildade pedestre, saí de Miami rumo a Havana faltando exatamente cinco minutos para as 16:00 horas  – é preciso chegar cedo uma vez o que pôr do sol começa às 17:14. 

    Entro no ônibus e, como sempre, me deparo com a presença predominantemente feminina em seus assentos, o que me leva a refletir nessa prevalência de gênero. Ora, as famílias menos abastadas, quando muito, possuem uma moto, mas aqueles que a utilizam são, via de regra, os homens, relegando às mulheres a utilização exclusiva do transporte público – um aspecto típico e marcante do machismo que ainda predomina sobejamente num país que, de lambuja, ainda conta com um misógino do pior quilate manipulando com suas mãos de morsa o leme de uma embarcação à deriva. 

    A essa hora, o trânsito é calmo por me deslocar no contrafluxo, de modo que o trajeto até Havana – atravessando os manguezais repletos de plástico, bairros humildes e algumas repartições públicas batizadas com nomes proparoxítonos – se desenrola tranquilo e sem sobressaltos. Desço num ponto de ônibus, já no bairro do Varadouro, próximo à antiquíssima e decadente rua da Areia, ainda famosa e temida por seus bordéis e pela presença, outrora esplendorosa, hoje tímida, de prostitutas e de algum incipiente tráfico de drogas. Em seguida, me dirijo ao Hotel Globo, um edifício imponente construído em 1928 em estilo Neoclássico, atualmente convertido em centro cultural. O Hotel oferece uma vista esplêndida ao rio Sanhauá. De seu mirante balaustrado, passo a contemplar o rio nas adjacências de onde a cidade nasceu, mais precisamente a partir do Porto do Capim. Encontro-me, nesse exato momento, a cerca de trezentos metros de suas margens, em cuja mata ciliar imperam as espécies típicas do mangue, aqui relativamente bem preservadas. Para além do rio, o horizonte nos revela uma porção generosa de Mata Atlântica quase intacta – responsável por conferir um aspecto selvagem à vista de todos – e, em terceiro plano, extensos e exauridos canaviais: um cenário que remete qualquer amigo da leitura ao fogo-morto e à bagaceira, fenômenos típicos da monocultura, eternizados e tão bem esmiuçados pelo parahybaníssimo José Lins do Rego. 

    Em Juan Persona, insisto, a contemplação do pôr do sol é algo tão bem assimilado por parte de seus habitantes que o fenômeno, observado a partir do Hotel Globo, da Casa da Pólvora e da rua General Osório, é parte inerente de sua cultura urbana. Dali de onde me encontro, além dos sempiternos turistas, há também muitos pessoenses: noivos que aproveitam a luz áurea e diáfana proporcionada pela puesta para eternizar o momento idealizado em sessões fotográficas, transeuntes inadvertidos ou interessados como eu, e inclusive policiais militares que, em seus breves momentos de descanso e distração, se valem do espetáculo público e gratuito que generosamente oferece a seus olhos inquisidores a beleza diária e apaziguante de que todos precisamos para ludibriar as sórdidas imagens que abundam com desenvolta desfaçatez em território tupiniquim. 

    O relógio marca exatamente 16:35 quando faço os primeiros registros fotográficos, mas não posso me deter muito por ali, pois é preciso dar sequência a minha flânerie e não perder o pôr do sol nos dois destinos que me faltam. Saio do Hotel Globo um pouco afanado e resfolegante e parto direto à Casa da Pólvora. Durante o curto trajeto até lá, passo a divagar sobre esses valiosos momentos dedicados à caminhada e sou atravessado por uma sensação plena de contentamento. Nestas ocasiões, é inevitável não pensar em pedestres notáveis, porém mais afeitos à introspecção, como Baudelaire e suas deambulações parisienses sob os efeitos malincônicos do spleen de Paris e, obviamente, como o decrépito porém inquieto e genioso Rousseau, cuja obra Les rêveries d’un promeneur solitaire nos proporciona ideias e meditações luminosas oriundas de seus incansáveis passeios a pé pelos arredores da capital francesa. Minha fruição, porém, destoa em muito das emoções nutridas por esses inconfundíveis escritores e se reveste de uma índole diametralmente oposta. A caminhada, seja ao pôr do sol, seja sob uma chuva fina e suportável, não exerce sobre mim seus desdobramentos lúgubres. A sensação que os passeios pedestres infundem em meu espírito turvado e em minha índole macambúzia servem precisamente como um antídoto às situações adversas. É como se eu estivesse plenamente integrado à cidade, como se eu, na condição de observador externo, passasse, subitamente, a ser parte viva e inerente do cenário urbano. Uma sensação que corrobora a tão solapada ideia de que o melhor de determinado lugar são justamente as pessoas que o habitam, aquelas que fazem com que a cidade pulse sua vitalidade exuberante e flua em seu desatado fluxo cotidiano, a despeito de todas as mazelas inerentes à vida nas capitais, responsáveis por reduzir nossa expectativa de vida a níveis catastróficos. Meu entusiasmo pelo fator humano, tal como o de Caymmi pelo mar, beira à obsessão, de tal modo que, em meus planos e conjecturas sobre possíveis destinos de viagem, jamais fizeram parte desse rol os desertos que, se por um lado oferecem paisagens esplêndidas e uma via desimpedida ao mis-en-abîme, melhor amiga do sublime, por outro, carecem da presença e do calor humano tão peculiares aos trópicos. Ainda descendo ladeiras digressivas, se por ventura me fosse concedida a oportunidade de conhecer destinos desprovidos de uma taxa demográfica aquém daquela que considero razoável, preferiria, sem qualquer nesga de dúvidas, as florestas amazônicas, as planícies encharcadas de arroz no Vietnã e até mesmo os inúmeros vales e desfiladeiros da exótica e dispendiosa Rota da Seda, porém nunca, jamais, sob hipótese alguma, o instagrâmico Salar de Uyuni, o motoclubístico deserto do Atacama e as terríveis e coruscantes sessões fotográficas registradas em pleno deserto desprovido de vida no Qatar.

    Às 16:39, parto do Hotel em direção à Casa da Pólvora, para tanto, entro pela rua Padre Pereira passando pela histórica praça Antenor Navarro. Embora abril seja um mês quente, as últimas horas da tarde costumam ser amenas e com ventos abundantes, de modo que o trajeto que faço até minha segunda parada se desenrola numa atmosfera agradável. Ao sair da Padre Pereira, entro na Ladeira São Francisco, primeira rua da cidade e, em minha penosa subida, aproveito para contemplar também seus edifícios – alguns deles erigidos ainda no século XVIII. Após alguns minutos de escalada, é inevitável não fazer uma analogia com o Pelourinho de Salvador e com a eloquente e acentuada Ladeira da Misericórdia na pernambucana Olinda, ambas cidades antiquíssimas e repletas de ruas íngremes.

    Uma vez na Casa da Pólvora, passo à coleta de algumas informações importantes. Trata-se da única casa remanescente que servira de arsenal no imenso esforço colonial português em manter suas imensas possessões longe das investidas de franceses e holandeses. Concluída em 1704, sua arquitetura conserva as principais características dos edifícios seiscentistas: as colunas em pedra calcária entalhada e teto abobadado erigido com tijolos e argamassa. A fachada do edifício está voltada ao poente, de modo que dali se pode observar o estuário do rio Paraíba e Porto do Capim, tendo como cenário de fundo a já mencionada reserva ecológica, além uma vista frontal estupenda do pôr do sol. Em minha breve visita ao local, me deparo com casais namorando enquanto aguardam a morte diária do dia, alguns adolescentes aproveitando-se do momento para fumar um baseado nesse cenário inspirador capaz de potencializar brisas, e inclusive um cavalo baio, pastando calmamente na grama do montículo encimado pela Casa. O edifício, erguido em local estratégico e com sua porta virada ao poente só confirma a vocação da cidade para a contemplação da puesta

    Tiro mais algumas fotos às 16:47 e me preparo para a golden hour em meu último destino, a rua General Osório. Este último trecho de minha flânerie abriga o núcleo monumental da cidade. Passo primeiramente pelo Colégio e Internato Nossa Senhora das Neves e, logo em seguida, pela Basílica de mesmo nome, cuja construção, em estilo eclético, se iniciou com a fundação da cidade, em 1586. A título de curiosidade, João Pessoa, terceira capital mais antiga do Brasil, em seus quase quinhentos anos de história, teve diversos nomes, começando por Nossa Senhora das Neves – homenageando a santa padroeira da cidade; depois Filipéia, em honra e louvor ao rei Felipe de Espanha, já que o reino de Portugal estava sujeito à Coroa Espanhola naquele então; em seguida Frederikstad (durante a invasão neerlandesa), mais conhecida como Frederica ou Frederícia – as fontes discrepam –, pois seus habitantes à época tinham pouca familiaridade com o idioma falado nos Países Baixos; e por fim Parahyba, este último o mais duradouro, tendo sido substituído somente em 1930 em virtude da morte do político João Pessoa, vítima de um crime passional cujos desdobramentos conferiram uma “motivação política” que serviria de estopim à Revolução de 1930 e à ascensão de Getúlio Vargas ao poder.

    Feita esta pequena porém imprescindível digressão, sob os bons e indiferentes auspícios de Nossa Senhora das Neves a um ateu graças a Deus, viro à direita e adentro finalmente à rua General Osório, talvez um dos pontos mais altos da cidade. Passo defronte à Igreja e Mosteiro de São Bento e chego a meu destino final, a General Store, um bar de cuja varanda seus frequentadores costumam assistir às cenas finais do pôr do sol feérico e, naquele dia, em especial, incandescente. 

    Por fim, já de olhos marejados, clamando para que aquele momento se demorasse mais um pouco, embora eu soubesse que ele se eternizaria na memória e no registro que ora vos exponho, rememorei alguns momentos atribulados e repletos de tristura por que havia passado nos últimos meses, transido pela insegurança que me suscitava perguntas do tipo “que diabos vim fazer nas Paraíbas?!” e coisas do gênero, e me lembrei da calorosa recepção que me ofereceram sem nenhuma contrapartida, da sensação de me aproximar da praia e sentir o cheiro de sal emanando das ondas, e recordei os ventos fartos que evocam bons agostos em seu curso irrefreável arrefecendo nossos corpos na horas mais quentes do dia, e inclusive das derrotas retumbantes protagonizadas pelo Botafogo-PB – há mil times que perdem, nenhum, porém, perde tão convictamente como o Belo. E assim, em meio a tantos pensamentos disparatados, tantas imagens prolíficas se desencadeando perante meus olhos incrédulos, tive o prazer de constatar e compreender, subitamente, para o desespero inconsolável de minhas quimeras e para a consternação geral de minhas dores, o que havia me levado até ali.

    Pego umas cervejas no bar e me preparo para fazer meus últimos registros. Nesse exato momento, sou tomado pela sensação ambígua de estar perdendo a puesta justamente por estar aferrado à minha câmera de celular, tal como os demais ali estão, numa espécie de devoção religiosa não se sabe por quem, se ao Sol, se ao digital. À revelia desses pensamentos – só fiquei torcendo para que nenhum infeliz aplaudisse o pôr do sol – foquei na câmera que, por sua vez, concentrou suas lentes no panorama de abril, revestido por uma luz inefável, uma aura que converte qualquer babaquara como eu num fotógrafo formidável, e assisti, como pude, ao desfile meteórico de sua paleta de cores, começando num azul cerúleo que, paulatinamente, foi cedendo espaço a um rosa pálido e, minutos depois, a um laranja candente que me remeteu aos horizontes secos da Califórnia, até atingir seu apogeu numa profusão de cores tais que me peguei a comparar – já arrebatado e genuflexo, quase puxando o primeiro aplauso – se algum dia presenciara pôr do sol semelhante. E bem, depois de algumas ponderações, cheguei à óbvia conclusão de que não, nenhum pôr do sol sob o céu borrado e levemente filtrado por nuvens que se estendiam no horizonte em dose certa, nenhuma vista, com o olhar concentrado sobre o Hotel Globo – minha primeira parada, lá embaixo –, cuja silhueta era agora banhada por uma luz oblíqua e anêmica, assumiu uma tonalidade baça, destacando-se naquela orgia policromática e conservando, a despeito de sua incorruptível brancura, alguma dignidade histórica. 

    1. Texto redigido para integrar o projeto Retardar la puesta, de Jean Palavicini, cujo intuito era desafiar pessoas e sua relação com o pôr do sol, de modo que, numa caminhada ou contemplação vespertina, tentássemos, através de nossas perambulações, retardar o momento irrevogável do pôr do sol. O projeto se destinou à obtenção do título de mestre em Artes pela Universidade de Córdoba – Argentina.  ↩︎
    2. Na dicotomia entre Miami e Havana, valho-me grosseiramente da definição proposta pelo filme-documentário Miami-Cuba, dirigido por Caroline Oliveira, sobre o centro histórico pessoense e as diferenças entre se viver na beira ou na brenha. ↩︎



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